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Volto para casa, a coisa continua a doer mas os analgésicos e o sono natural da 2ª feira tratam do resto. Telefono a dizer que não estou em condições de trabalhar, que amanhã estarei melhor, "mil desculpas, telefona se houver algum problema".
3ª feira, dia 11 de Janeiro, acordo no mesmo estado que no dia anterior mas meto logo dois analgésicos no bucho. O dia passa-se dentro do possível mas, numa consulta de rotina, o senhor doutor olha para mim, coxa e cambaleante, desprovida da minha natural graciosidade, e diz-me para eu ir às urgências, que aquele tronco não era o meu tronco. A medo, pergunto "às urgências? tem a certeza? será mesmo necessário?" A gente ouve histórias, adivinha como será mesmo sem ter lá estado. Haveria necessidade. "Faça-me esse favor e vá ver isso!"
E a Eurídice, a doce e ingénua Eurídice (sim, sou uma donzela neste episódio) lá se desloca às fatídicas urgências, onde começa a nossa história (para a próxima opto pelo estilo "in media res", para vos poupar a amarguras prosaicas. Para a próxima, será épico").
Elenco cronológico dos acontecimentos da passagem da noite de 12 para a manhã de 13 (agora na 1ª pessoa):
20h15 - admissão nas urgências. Pagamento da taxa moderadora.
20h20 - é-me atribuída a pulseirinha verde (na imagem) - significado da pulseirinha verde: não está a esvair-se em sangue, não traz um braço na mão nem tem a cara no sítio do rabo...não é urgente mas vamos deixá-la pensar que sim.
20h30 - penso "até agora, não percebo o porquê de tanto debate e queixa. Entrei agora mesmo e já sabem que sou verde. E que tenho a oxigenação a 100%. Muito eficiente, sim senhores."
20h40 - telefono à mãe ("Não, mãe, não preciso que venhas de cascos de diabo mais velho, com o pai, até aqui, para me fazeres companhia. Isto há-de ser rápido, eu já sou crescida, sei tomar conta de mim e toruxe chocolate comigo. Vamos falando")
21h - "ainda não chamaram ninguém, que estranho..."
21h20 - "olha, tão a chamar alguém!"
21h55 - "não, mãe, não preciso que venhas aqui ter, a sério. 'Tou óptima. Deixa-te estar. Sim, já comi. Não, não tenho frio."
22h30 - "olha, chamaram outra pessoa"
23h - "olha! Revistas!"
23h10 - "olha, o miguel esteves cardoso consumia cocaína desde os 14 anos. Grande estróina. E esta está grávida. Chiça, toda a gente a parir, hoje em dia. Ah, espera, esta revista é de 2008..."
23h55 - estou nervosa. dói-me tudo, já não tenho posição. Dirijo-me ao balcão de entrada e pergunto quanto tempo falta para ser a minha vez, porque não me estou a sentir muito bem, as dores pioraram, estou a tremer. ""Depende das horas a que entrou, menina. O senhor que foi agora para a consulta chegou cá às 17h. A que horas entrou a menina"
23h56 - suores frios, visão turva, quebra de tensão
23h57 - "oiça, eu preciso de ver alguém, diga-me com quem é que tenho de falar para saber se é melhor ir para casa, se devo ficar." "Pois, não sei, menina. Eu acho que tem de esperar a sua vez. Daqui a 3 horas é capaz de ser atendida."
00h10 - convencida de que está um único médico "lá dentro" a atender dezenas de pessoas moribundas, entro na "área reservada" para pedir ajuda àquela alma torturada.
00h15 - encosto-me à parede a chorar de desespero e dores enquanto por mim passam umas dezenas de médicos, uns ao telefone com a namorada, outros a contar a bebedeira do amigo à enfermeira, outros que passavam de 5 em 5 minutos ora com bata ora sem bata, outros ainda que, a avaliar pela passada, pareciam estar no parque a desfrutar do fresquinho da madrugada.
00h40 - ainda a chorar, uma recepcionista pergunta-,me se estou ali sozinha, diz-me que não se deve estar sozinho nas urgências e arranja-me uma enfermeira.
01h10 - espero de pé que a enfermeira apareça. Pergunta-me "nunca teve dores, é? Nunca lhe doeu nada na vida" Voltei ao infantário, só faltava a taça de alface.
01h30 - estou a ser vista por uma médica que me toca com relutância e repugnância na costela afectada. Escreve no computador durante 15 minutos, dá-me um papel para fazer raio-x e análises. Pergunto-lhe "tem ideia do que possa ser?" "Pode ser muita coisa. Pode não ser nada. Eu não sei. Não sei."
01h45 - "espere aqui na salinha um bocadinho que já a chamo com os resultados.
01h47 - chegam os pais, à revelia. A mãe traz bolachinhas e mimo.
01h59 - gozamos com a médica que nada sabe. gozamos com o médico que não consegue dizer os nomes de ninguém no intercomunicador, pelo que ninguém se levanta quando é ele a chamar.
02h30 - deve estar quase. Era "um bocadinho"
03h25 - deve estar mesmo quase. "Já passaram duas horas, caramba"
03h30 - "Eurídice Gomes, balcão dos verdes" Lá vou eu. A menina diz que as análises não acusam nada e o raio-x também não. No entanto, como as dores são muitas, sugere-lhe o meu tronco defeituoso e desequilibrado e as dores de que padeço ao mais ligeiro toque que posso ter a costela partida. "Tem de ir para ortopedia"
03h40 - Bato à porta da ortopedia. Lá de dentro, um sujeito que admito poder ter tirado o curso o curso de medicina mas que não teve mãe para lhe ensinar maneiras pergunta-me "O que é que está aqui a fazer?" "Estava aqui no bairro e lembrei-me passar por aqui para ver se precisava que alguém lhe pontapeasse a masculinidade e ensinar boas maneiras", não respondi eu. Mandou-me esperar, que já me chamava. Saiu da cadeira onde estava estirado a olhar para o computador e dirigiu-se a outra sala para atender um paciente com um braço partido que o esperava.
03h50 - volta à sala, manda-me entrar e pergunta-me o que tenho. Explico. Pergunta-me se a médica que me mandou ali era novinha. Tinha de ser, porque costelas é ossos mas não é ortopedia, é cirurgia. Chama uma enfermeira para me levar à cirurgia, não sem antes percorrermos todos os gabinetes em busca da bruxa má que lhe perturbou a noite e lhe enviou uma costela que não era da competência dele.
03h59 - cirurgia. "Oiça, não tem nada nas análises, o raio-x não tem nada. Dá-se bem com Nolotil? Óptimo, tome estes enquanto lhe doer" "Quanto tempo vai ser isso?" "No mínimo, se ficar quietinha, um mês. AS melhoras"
04h05 - tenho alta do serviço de urgências de São José, com uma receita de analgésicos na mão, dores intensas no músculo intercostal (agora sim, sei que é uma distensão muscular) e uma história para contar.
Foi no São José, podia ter sido no S. Francisco Xavier. Também já lá estive em pequena, quando soprei para dentro de um cinzeiro e fiquei cega de um olho durante uma semana, quando desloquei o pulso ao cair de um escorrega (era para a frente, não para o lado que se deslizava) e quando engoli uma espinha, que parecia o osso de um dinossauro. Por estas 3 visitas anteriores, achei que a experiência tinha de falar mais alto e impedir-me de lá voltar. Para a próxima, experimento o Santa Maria. Oiço dizer que ao menos tem acção, com estropiados, berros, rixas, braços em gelo na mão do cunhado...
e um autografo no livrinho amarelo, não deixaste?
ResponderEliminarNão, Verinha... O povo é sereno :)
ResponderEliminarE a web não se fez para outra coisa.
Muitos parabéns, tantos parabéns a ti!
obrigada euridice. és a minha hipocondriaca preferida!
ResponderEliminarda proxima quero ir contigo :P
se vieres comigo, garantidamente nunca mais conseguimos uma consulta nesta cidade, ficamos com os nomes riscados na lista de todos os médicos!
ResponderEliminar:)
As pulseiras são como as frutas.Ninguém, no seu perfeito juízo , trinca as frutas em verde, pois não se podem tragar, como diria o grego que punha a bicharada a falar. Portanto, com as pulseiras, há que esperar que amadureçam, e isso leva o seu tempo.
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